Crônica de Dom Afonso Henriques
Introdução
- Foi na batalha de Ouriques que nasceu o reino português.
Enfrentando os infiéis maometanos os portugueses achavam-se em
grande inferioridade numérica. Muitos cronistas idôneos referem-se
a cem ismaelitas para cada lusitano. [...]
O
texto – Eu, Afonso, Rei de Portugal, […] estava com meu exército
nas terras de Alentejo, nos campos de Ouriques para dar batalha a
Ismael e outros quatro reis mouros, que tinham consigo infinitos
milhares de homens. E minha gente, temerosa de sua multidão estava
atribulada e triste sobremaneira. E entanto que publicamente diziam
alguns, ser temeridade acometer tal jornada. E eu, enfadado do que
ouvia, comecei a cuidar comigo o que faria.
E
como estivesse na minha tenda um livro em que estava escrito o
Testamento Velho e o de Jesus Cristo, abri-o e li nele a vitória de
Gideão e disse entre mim mesmo:
-Mui
bem sabeis Vós, Senhor Jesus Cristo, que por amor vosso tomei sobre
mim essa guerra contra Vossos adversários. Em Vossa mão está dar a
mim e aos meus fortaleza para vencer esses blasfemadores do Vosso
Nome.
Ditas
essas palavras, adormeci sobre o livro, e comecei a sonhar que via um
homem velho vir para onde eu estava, e que me dizia:
-Afonso,
tem confiança, porque vencerás e destruirás esses reis infiéis, e
desfarás sua potência e o senhor se te mostrará.
Estando
eu nessa visão, chegou João Fernandes de Souza, meu camareiro,
dizendo-me:
-Acordai,
senhor meu, porque está aqui um homem velho que vos quer falar.
-Entre,
lhe respondi, se é católico.
E
tanto que entrou, conheci ser aquele que no sonho vira, o qual me
disse:
-Senhor,
tende bom coração; vencereis e não sereis vencido. Sois amado do
Senhor porque, sem dúvida, pôs sobre vós e sobre vossa geração,
depois de vossos dias, os olhos de Sua misericórdia até a décima
sexta descendência, na qual se diminuirá a sucessão, mas nela
assim diminuída, Ele tornará a por os olhos e verá. Ele me manda
dizer-vos que quando na seguinte noite ouvirdes a campainha da minha
ermida, na qual vivo há 66 anos, guardado no meio dos infiéis com
favor do mui alto, saiais fora do real sem nenhum criado, porque vos
quer mostrar Sua grande piedade.
Obedeci
e prostrado em terra com muita reverência, venerei o embaixador e
quem o mandava. E, como posto em oração, aguardava o som, na
segunda vela da noite, ouvi a campainha, e armado com espada e
rodela, saí fora dos reais.
E
subitamente vi, à parte direita, contra o nascente, um raio
resplandecente, indo-se pouco a pouco clarificando; cada hora se
fazia maior. E pondo de propósito os olhos para aquela parte, vi, de
repente, no próprio raio, o sinal da cruz mais resplandecente que o
sol, e um grupo grande de mancebos resplandecentes, os quais, creio
que seriam os Santos Anjos. Vendo, pois, essa visão, pondo à parte
o escudo e a espada, me lancei de bruços e, desfeito em lágrimas
comecei a rogar pela consolação de seus vassalos, e disse sem
nenhum temor:
-A
que fim me apareceis, Senhor? Quereis, porventura, acrescentar fé a
quem já tem tanta? Melhor é, por certo, que vos vejam os inimigos,
e creiam em vós, que eu, que desde a fonte do Batismo vos conheci
por Deus verdadeiro, filho da Virgem e do Padre Eterno, e assim Vos
reconheço agora.
A
cruz era de maravilhosa grandeza, levantada da terra quase dez
côvados (= 4,5 mts). O Senhor, com um tom de voz suave, que minhas
orelhas indignas ouviram, disse:
-Não
te apareci deste modo para acrescentar tua fé, mas para fortalecer
teu coração neste conflito. E fundar os princípios de teu reino
sobre pedra firme. Confia, Afonso, porque não só vencerás esta
batalha, mas todas as outras em que pelejares contra os inimigos de
minha Cruz. Acharás tua gente alegre e esforçada para a peleja; e
te pedirá que entres na batalha com o título de rei. Não ponhas
dúvida, mas tudo quanto pedirem, lhes concede facilmente.
-Eu
sou fundador e destruidor dos reinos e impérios, e quero em ti, e em
teus descendentes, fundar para Mim um império por cujo meio seja Meu
Nome publicado entre as nações mais estranhas. E
para que teus descendentes reconheçam quem lhes dá o reino,
comporás o escudo de tuas armas do preço com que Eu remi o gênero
humano, e daquele por quem fui comprado pelos judeus, e ser-me-á
reino santificado, puro na fé e amado na minha piedade.
Eu,
tanto que ouvi essas coisas, prostrado em terra, O adorei, dizendo:
-Por
que méritos, Senhor, me mostrais tão grande misericórdia? Ponde,
pois, Vossos benignos olhos nos sucessos que me prometeis e guardai
salva a gente portuguesa. E se acontecer que tenhais contra ela algum
castigo aparelhado, executai–o sobre mim e livrai este povo que amo
como meu filho único.
Consentindo
nisso, o Senhor me disse:
-Não
se apartará deles, nem de ti, nunca Minha misericórdia, porque por
sua via tenho aparelhadas grandes searas e eles, escolhidos por Meus
segadores, em terras muito remotas.
Ditas
essas palavras, desapareceu. E eu, cheio de confiança e suavidade,
me tornei para o real”.
Fonte:
http://www.pliniocorreadeoliveira.info/Mult_740218_portugal_fundacao.htm#.WN0eANIrLIX
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